Embora se preocupe
diretamente com a vida futura ou extraterrena, não deixa o Espiritismo,
todavia, de cogitar do bem-estar humano, discutindo os aspectos fundamentais da
questão social. Não se pense, pois, que a Doutrina Espírita seja omissa nos
pontos essenciais da vida terrena. E tanto é verdade, que o Espiritismo encara
a questão social com realismo, situando-a racionalmente no ângulo em que ela se
encontra. Neste ponto, conquanto não concorde com a solução puramente
científica, divergindo assim, da dialética materialista de Engels e de Marx, o
Espiritismo é objetivo, é muito objetivo até, porque não é nas regiões etéreas
nem pela prática de penitências, mas no mundo material, pelo aperfeiçoamento
das próprias instituições sociais, que procura a solução da luta entre o
capital e o trabalho.
Embora o conflito
social, que não é deste século, mas um fenômeno peculiar ao desenvolvimento da
civilização, tenha a sua origem nas relações humanas, não pode ser resolvido
exclusivamente por meios materiais. Coerente com este princípio, o Espiritismo
não esposa a tese materialista e analisa a questão à luz de outra ordem de
ideias. Neste momento de confusão universal, talvez nem todos os estudiosos dos
problemas sociais, incluindo-se possivelmente alguns espíritas, tenham
procurado conhecer o pensamento da Doutrina a respeito da questão social.
O materialismo
admite o nivelamento geral enquanto que a Doutrina Espírita explica as
desigualdades à luz da reencarnação, valendo recordar que a dialética
materialista considere o assunto como sendo problema fundamental da sociedade e
tendo natureza econômica.
Ora, a questão
social existe, sim. Os problemas são evidentes. Mas o Espiritismo e o
materialismo histórico encaram a questão por prismas diferentes. O Espiritismo
não nega a existência da questão social, uma vez que a má distribuição da
riqueza, produzindo a opulência de uns e a miséria de outros, é um fato notório
e incontestável. A Igreja Católica Romana também reconhece que a riqueza não
está sendo distribuída com equidade, pois não é outro o pensamento da encíclica
Rerum Novarum. (1)
A questão social
existe porque há desarmonia entre o capital e o trabalho, determinando o
conflito de classes. Mas as soluções propostas são desiguais, de acordo com as
divergências filosóficas.
Tomando-se por
premissa a negação da existência da alma, está claro que o materialismo não
pode chegar à conclusão espiritualista, dentro de cuja concepção o problema do
homem não é exclusivamente econômico. O Espiritismo, neste particular, não
diverge da Igreja, porque ambos admitem, sem qualquer atrito filosófico, três
pontos primordiais: a) existência de Deus; b) imortalidade da alma; c)
preponderância do princípio moral. Até aí não há divergência. A discordância
entre o Espiritismo e a Igreja, em matéria filosófica, começa quando se abre a
questão reencarnacionista. Embora seja também espiritualista e tenha, como o
Espiritismo, aqueles três pontos de coincidência, a Igreja não admite a
reencarnação e, por isso mesmo, não pode apreciar as desigualdades sociais com
a mesma visão da Doutrina Espírita.
Não aceitando o
princípio da igualdade absoluta, justamente porque a concepção igualitária
entra em conflito com a teoria da reencarnação, o Espiritismo prescreve,
todavia, solução pacífica, condicionada ao progresso moral. Pouca gente, porém,
sabe o que diz a Doutrina Espírita acerca do debatido e complexo problema
social. É o aspecto menos estudado no Espiritismo. Entretanto, não conheço
orientação mais segura, mais equilibrada do que esta que encontramos em Obras
Póstumas, de Allan Kardec (9ª edição, pág. 361): “Por melhor que seja uma
instituição social, sendo maus os homens, eles a falsearão e lhes desfigurarão
o espírito para a explorarem em proveito próprio.”
Como se vê, a
reforma social exige, antes de tudo, a reforma do individuo. Nenhuma
transformação violenta resolve o problema do equilíbrio social sem obter,
primeiramente, o progresso moral pela educação do espírito. A chave da questão
social não está na subversão radical das instituições, porque ainda que se
substitua a estrutura da sociedade ou se dê nova organização ao Estado, sem
elevar o nível moral das massas, haverá os mesmos choques, uma vez que o
egoísmo humano subsiste em qualquer situação. Só se poderá aperfeiçoar o
mecanismo social com o gradativo aperfeiçoamento individual. A tese espírita,
portanto, é realista, senão talvez a que menos se aproxima da utopia, porque se
baseia no conhecimento da natureza humana.
Temos aqui, neste
pequeno trecho, a interpretação da luta entre o capital e o trabalho, à luz da
Doutrina Espírita: “A questão social não tem pois, por ponto de partida a forma
de tal ou qual instituição; ela está toda no MELHORAMENTO MORAL dos indivíduos
e das massas. Aí é que se acha o princípio, a verdadeira chave da felicidade do
gênero humano, porque então os homens não mais cogitarão de se prejudicarem
reciprocamente.” (Allan Kardec em Obras Póstumas, já citado).
Não aceito a tese
comunista porque não vejo traço de afinidade entre Comunismo e Espiritismo. Não
creio que a questão social possa ser resolvida satisfatoriamente por meio da
solução econômica, quando é certo que as necessidades do homem não são apenas
as de ordem material. O problema econômico não contém em si mesmo toda a
extensão e complexidade da questão social. Portanto, a problemática das
desigualdades sociais não se subordina, exclusivamente, ao desajustamento
econômico. Ela reclama indagações de maior transcendência, acima do plano
material, embora prevaleçam, é bem verdade, até certo limite, as causas de
ordem biológica.
De acordo, pois, com
a Doutrina Espírita, não creio na solução materialista. Não encontro semelhança
de concepções entre a doutrina materialista e a Doutrina Espírita, porque
reconheço a prevalência de três razões que considero substanciais:
a) O Espiritismo,
dada a vocação de sua doutrina, está em desacordo com o materialismo, e,
portanto, encara a questão social sob ponto de vista diferente.
b) Em face da
reencarnação, a pedra filosofal do Espiritismo, a igualdade absoluta é
impossível, sob pena de derrogação da Justiça Divina.
c) O problema da felicidade humana, tendo raízes profundas no Espírito, e não exclusivamente na matéria, está condicionado à reforma moral do indivíduo, porque na sociedade composta de indivíduos desorganizados e corrompidos, não pode gozar-se a plenitude de paz e de justiça.
c) O problema da felicidade humana, tendo raízes profundas no Espírito, e não exclusivamente na matéria, está condicionado à reforma moral do indivíduo, porque na sociedade composta de indivíduos desorganizados e corrompidos, não pode gozar-se a plenitude de paz e de justiça.
Quando, pois, o indivíduo
é mau, nenhum regime consegue convertê-lo em homem de bem, sem que ele se
reforme interiormente. A Doutrina Espírita prescreve, exatamente por isto, a
reforma do indivíduo para que se possa reformar o grupo. E sem a reforma
individual, sem a observância do fator moral com base na existência do
Espírito, não se destrói o antagonismo social provocado pela luta de classe e
pela desproporção dos bens materiais.
Se, sob o aspecto
filosófico, vejo profunda divergência entre o Espiritismo e o Comunismo, porque
aquele apoia toda a sua filosofia na existência e sobrevivência do Espírito,
enquanto este se baseia no materialismo histórico, não é menor a discordância
sob o ponto de vista político. Ora, politicamente o Comunismo admite o direito
do Estado sobre a propriedade privada, o que está em desacordo com os
princípios espíritas. Veja-se Allan Kardec em O Livro dos Espíritos (Parte
Terceira, cap. XI). O regime que melhor corresponde à índole da Doutrina
Espírita é a democracia, porque a estrutura filosófica do Espiritismo não se
adapta a nenhuma forma de poder totalitário. O nacionalismo estreito é tão
contraproducente quanto o internacionalismo incondicional. A democracia é
regime de conciliação, de equilíbrio, porque repele instintivamente qualquer
hegemonia e permite a participação de TODOS no progresso comum, sem distinção
de classes.
O sistema
democrático, embora sujeito a deformações humanas, também evolui, marchando
para o reinado pacífico da grande democracia cristã. Os exclusivismos são
prejudiciais à ordem social, porque o progresso da sociedade depende da
cooperação de todas as classes e não apenas de uma só classe.
A democracia cristã
não comporta a precedência de nenhuma classe social sobre as outras, mas, ao
contrário, oferece oportunidade para o bem-estar coletivo, o entendimento, a
solidariedade, dentro da Justiça Social iluminada pelo Evangelho. Qualquer
ditadura, seja de um indivíduo ou de uma classe, de um partido ou do Estado;
seja do capitalismo ou do proletariado, da cruz ou da espada, da ciência ou da
fé, não oferece ambiente propício à livre manifestação do pensamento porque é
sempre unilateral. Dentro de um regime democrático não pode subsistir qualquer
exceção de classe em detrimento da liberdade humana.
A questão social
deixará de ser o pesadelo da civilização quando cessar a exploração do homem
pelo homem com a socialização do capitalismo. O Estado é entidade abstrata.
Logo, não é o Estado que traz a felicidade geral. O Estado é bom quando os
homens são bons. O maior problema, portanto, é melhorar os homens. Creio, nesse
caso, que a Democracia Cristã, sem o predomínio de uma classe ou de outra, mas
pela união de todas as classes, realizará a maior missão social da História,
resolvendo o conflito entre o capital e o trabalho, para o bem-estar geral.
Por todas estas
razões é que à luz da Doutrina Espírita não aceito a tese materialista nem
qualquer doutrina que reconheça a supremacia do deus Estado. Creio, finalmente,
que a questão social, segundo a concepção da Doutrina Espírita, será resolvida,
cedo ou tarde, mas pelo processo normal de evolução.
A desarmonia entre
as classes (patrões e empregados, ricos e pobres, chefes e subordinados,
governantes e governados) não será destruída pelo providencialismo de uma
fórmula ou de um sistema, e sim pela compreensão recíproca, pela exatidão de
consciência, pelo sentimento de tolerância, quando cada um, em qualquer
circunstância ou posição em que se encontre, sem que se faça necessária a
fiscalização ou a rigidez da lei, souber viver e agir dentro da sabedoria
universal do DEVER.
Nota do PENSE:
(1) Rerum Novarum
(Das Coisas Novas), encíclica escrita pelo papa Leão XIII em 1891, trata das
condições da classe trabalhadora causadas pela Revolução Industrial. É
considerada como um dos pilares da Doutrina Social da Igreja.
Fonte:
Mundo Espírita,
dezembro de 1945. Periódico espírita de Curitiba-PR, órgão de divulgação da
Federação Espírita do Paraná. Esse artigo foi incluído no livro Análises
Espíritas, de Deolindo Amorim, compilação feita pelo escritor espírita Celso
Martins e publicado pela Federação Espírita Brasileira.
Deolindo Amorim